No tecido complexo da sociedade brasileira, as manifestações de intolerância religiosa muitas vezes se disfarçam sob uma roupagem alarmante: a acusação de crimes com base espiritual. Esse fenômeno, infelizmente comum, evidencia uma tendência profundamente arraigada de estigmatizar e marginalizar crenças que fogem do mainstream religioso. No Brasil, onde as religiões de matriz africana e pagã têm sido historicamente marginalizadas, a “cultura do maldito” é uma realidade incômoda que merece nossa atenção quando falamos de espiritualidade como um direito individual.
O Significado da Palavra “Maldito”
Antes de mergulharmos nas nuances desse tema, é crucial entender o significado da palavra “maldito”. Segundo o dicionário Oxford, “maldito” refere-se a algo ou alguém que foi amaldiçoado, que é alvo de uma maldição ou praga. Por extensão, também pode denotar algo que é considerado execrável, detestável ou indigno de consideração positiva. Essa definição nos oferece uma lente através da qual podemos compreender a forma como certas práticas religiosas são percebidas e tratadas em nossa sociedade.
Estigmatização e Marginalização Religiosa
A estigmatização de religiões consideradas “fora do padrão” é um fenômeno profundamente enraizado na história brasileira. Religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, assim como práticas pagãs, como Bruxaria, são frequentemente rotuladas como “magia negra” ou associadas a práticas nefastas e obscuras. Perceba o recorte racista destes termos. Essa associação pejorativa tem raízes no racismo estrutural e na supremacia religiosa que permeiam nossa sociedade.
Quando uma crença não se encaixa nos moldes esperados da religião dominante, ela se torna alvo de suspeitas e preconceitos e a culpa recai em seus praticantes. O desconhecimento e a falta de diálogo inter-religioso alimentam esse ciclo de intolerância, transformando sistemas de fé legítimos em alvos de escárnio e discriminação. Um caso famoso no Brasil de situações em que a “cultura do maldito” foi usada para acusar injustamente praticantes de outras religiões foi o Caso Evandro.
O Caso Evandro
O “Caso Evandro” é um dos casos de crime mais notórios e complexos da história recente do Brasil. Ocorrido em 1992 na cidade de Guaratuba, no Paraná, o desaparecimento e subsequente assassinato de Evandro Ramos Caetano, um menino de apenas seis anos de idade, chocou e intrigou o país. O caso ganhou destaque não apenas pela brutalidade do crime, mas também pelas reviravoltas e controvérsias que o cercaram desde o início.
Inicialmente, a investigação apontou para um ritual de “magia negra” como responsável pelo desaparecimento de Evandro, levando à prisão de diversos suspeitos ligados a cultos religiosos afro-brasileiros, em um cenário marcado pela histeria e preconceito religioso. No entanto, ao longo dos anos, surgiram inconsistências e contradições nas evidências e nos depoimentos, levantando dúvidas sobre a narrativa inicial da polícia.
O “Caso Evandro” se tornou emblemático não apenas por sua complexidade investigativa, mas também por expor as fragilidades do sistema judicial brasileiro e a facilidade com que preconceitos culturais e religiosos podem influenciar o curso de uma investigação. Até hoje, muitas perguntas permanecem sem resposta, e o caso continua a ser objeto de debate e especulação, representando um lembrete sombrio das consequências da intolerância e da injustiça.
O Caso Flor de Lis
A associação da prisão da deputada Flor de Lis com rituais satânicos é um exemplo alarmante de como a intolerância religiosa pode distorcer a percepção pública e influenciar o desenrolar de investigações criminais, além de promover a limpeza de imagem de outras religiões. Em muitos casos, quando uma figura pública de um determinado grupo religioso é acusada de crimes graves, há uma tendência de alimentar o sensacionalismo para que fique claro que “ela não era uma de nós, era dos malditos!”
A acusação de envolvimento em rituais satânicos ou pagãos frequentemente carrega consigo estigmas sociais profundamente enraizados, alimentados por preconceitos e medos irracionais. É crucial reconhecer que acusações desse tipo podem ser facilmente instrumentalizadas para promover agendas políticas ou interesses pessoais, ao invés de servir à verdadeira justiça.
Diante desse contexto, é fundamental que as autoridades conduzam investigações imparciais e baseadas em evidências sólidas, evitando ceder à pressão da mídia sensacionalista e de manobras de limpeza de imagem. A associação da prisão da deputada Flor de Lis com rituais satânicos destaca a necessidade urgente de combater o uso de crenças espirituais em julgamento, fugindo do real crime julgado e afastando a figura do criminoso da religião que ele praticava, colocando assim na conta dos “malditos”.
O Perigo da “Cultura do Maldito”
A percepção de que determinadas práticas religiosas são “malditas” não apenas perpetua a intolerância, mas também coloca em risco a segurança e o bem-estar das comunidades que as praticam e é utilizada como limpeza de imagem de alguns grupos políticos e religiosos.
Além disso, outros perigos da “Cultura do Maldito” foge da esfera nacional e podemos percebê-los desde o século passado mundialmente na cultura popular, como por exemplo os vilões da Disney, sempre praticantes de bruxaria ou “magia negra”. Parece um detalhe bobo, mas a Disney construiu o inconsciente de milhões de crianças por todo o mundo. Ferramentas de mídia como filmes e séries constroem há décadas a associação daquele que “não é da religião dominante” com a figura do “vilão perigoso”. Felizmente percebe-se que desde a década de 90 algumas narrativas tem mudado e alguns vilões ou figuras que antes eram “malditas” se tornaram injustiçadas e ganharam uma nova roupagem.
Essa mentalidade perigosa não apenas viola os direitos humanos fundamentais, mas também mina os princípios de uma sociedade democrática e inclusiva. Ao rotular arbitrariamente certas práticas religiosas como ameaças à ordem pública, perpetuamos um ciclo de discriminação e marginalização que enfraquece a garantia de direitos individuais básicos.
Desafiando a Narrativa
É hora de desafiar a narrativa do “maldito” e reconhecer a riqueza e diversidade das práticas religiosas presentes no Brasil. O diálogo inter-religioso e a conscientização são ferramentas poderosas na luta contra a intolerância religiosa e a cultura do maldito.
É preciso votar de forma consciente e cobrar nossos representantes para que a sociedade consiga construir uma realidade onde todas as formas de fé sejam respeitadas, independentemente de sua origem ou tradição.