mar 17, 2025

Tigradinho – Um Conto Autoral

Era uma vez um anjo. E esse anjo sou eu. Quando vocês pensam em anjos, devem imaginar algo completamente diferente de mim: uma criatura alada, lindíssima, meio andrógina, geralmente caucasiana e vestindo uma túnica branca… Ou talvez aquelas imagens geradas por Inteligência Artificial, como um olho com asas. Aquilo me deu pesadelos quando vi! Mas […]

Era uma vez um anjo. E esse anjo sou eu.

Quando vocês pensam em anjos, devem imaginar algo completamente diferente de mim: uma criatura alada, lindíssima, meio andrógina, geralmente caucasiana e vestindo uma túnica branca… Ou talvez aquelas imagens geradas por Inteligência Artificial, como um olho com asas. Aquilo me deu pesadelos quando vi! Mas a realidade dos anjos não tem nada a ver com isso.

Se pudessem me ver, ficariam decepcionados. Sou extremamente comum: cabelos pretos, olhos pretos, pele marrom-clara e um tamanho medíocre de 1,61m. Visto camiseta preta, um agasalho cinza quando sinto frio — sim, eu sinto frio — e calça jeans. Aquela história do Cara nos criar à sua imagem e semelhança é literal até demais. A única diferença entre um anjo e um humano está em três coisas:

  1. Podemos ver vocês, mas vocês não conseguem nos ver;
  2. Não precisamos comer nem beber;
  3. Somos imortais.

Eu também poderia dizer que nascemos com funções predefinidas, mas, adivinhem: vocês também têm! Só não sabem qual é a missão. A diferença é que nós já nascemos cientes da nossa. Vocês só descobrem ao longo da vida — ou nem isso.

Alguns de meus irmãos foram designados para guiar grandes humanitários e guerreiros; outros, para observar criaturas terrivelmente más. A maioria cuida de quem está entre esses dois extremos: cuidadores, justiceiros, filósofos, artistas, cirurgiões, esportistas, operários, atendentes, taxistas, cabeleireiras, influencers, viajantes e até trambiqueiros.

E eu? Eu cuido dos que ninguém quer.

Sou o anjo dos esquecidos, daqueles que não têm mais nada além da esperança. Por isso me chamam de Z. A última letra do alfabeto. Minha função é acompanhar aqueles que foram deixados para trás: moradores de rua, dependentes químicos, os largados pela família — sejam adolescentes ou idosos em asilos — e crianças órfãs jogadas no sistema. Minha rotina é desafiadora. Seguro suas mãos no momento do abandono até o instante em que partem para outro plano, onde poderão descansar e cumprir uma nova missão. 

Estou nesse trabalho desde que o mundo é mundo. Fui criado para isso e sigo meu caminho. Nunca fui muito de falar, então resolvi escrever um diário. Peguei essa ideia de alguns de meus protegidos, solitários e cansados de falar com as paredes, que encontram refúgio na escrita. Eles também gostam de cantar. Ao contrário do que muitos pensam, os abandonados não vivem apenas na infelicidade suprema. Há dias bons.

Nesses dias, sinto até vontade de ser humano. Eles cantam, dançam, olham para o céu, tomam banho gelado no calor, conseguem uma comida gostosa, encontram um lugar à sombra, recebem gentileza de um desconhecido… Dias bons. Mas não são a maioria. A maioria é silêncio. E eu fico ali, ao lado deles. Tento reforçar minha luz para que sintam minha presença, mas é raro. Quando acontece, me sinto desconcertado. Ser notado é estranho demais para mim.

Sabe quando alguém se torna o próprio trabalho? Pois é. Um anjo que cuida dos abandonados acaba se sentindo um deles depois de certo tempo. Não tenho contato com quase ninguém, exceto alguns colegas que cruzam meu caminho vez ou outra. O anjo da morte, Azrael, é um deles. A gente se vê bastante. Ele é famoso, alguns de vocês já devem ter ouvido falar. Azrael tem um jogo de cintura magnífico, queria ser mais como ele. Foi um dos primeiros anjos. Nasci um pouco depois, quando o primeiro bebê foi primeiro abandonado para depois morrer no meio das pedras.

Certo dia, Azrael me chamou para encontrá-lo em uma lata de lixo no meio da cidade — um ponto de encontro comum para anjos da morte e dos abandonados. Quando cheguei, ele estava de cabeça baixa, olhando para dentro da lata.

— O que temos aqui? — perguntei.

Azrael suspirou, cansado como sempre.

— Um gato. — Apontou para um filhotinho tigrado, de uns três meses. — Não sei se vem comigo ou com você. Ainda está vivo, mas foi abandonado. Não consegue sair da lata. Vai morrer em breve, se não sair. Te chamei para esperarmos e ver com quem ele vai.

Não gosto de proteger animais abandonados. Eles morrem rápido, e isso me faz sentir um fracasso. Depois de milênios, ainda não sei como ajudá-los. Quando me percebem, fogem e acabam atropelados, somem… Então Azrael aparece, suspira e os leva.

Ficamos ali por horas, observando o filhote. Era teimoso. Tentava escalar a lata, miava alto e parecia bravo. Até que soltou um miado tão forte que me fez olhar de supetão dentro da lata. Grande erro. Ele me viu e se agarrou no meu rosto. Caí para trás, e ele continuava grudado em mim com toda a força. Se eu fosse humano, teria doído pra caramba.

— Bom, resolvido. Ele é seu — disse Azrael, aliviado.

— Espera um pouco — falei, ainda ofegante, sentindo o gato se acomodar no topo da minha cabeça. — Ele me vê! Ele me vê e consegue me tocar!

Isso era novo. Em milênios, só era tocado no momento da passagem dos abandonados para a morte. Mas aquele gato estava vivo. Muito vivo.

— Bom para você, meu amigo — disse Azrael, pouco interessado. — Eu vou indo. Acidente de trânsito ao norte.

E lá estava eu, sozinho, com um gato no meu cocuruto. Ele graciosamente pulou para o chão, sentou-se e me encarou.

O que era aquilo? Ele me via e conseguia me tocar. Caminhava entre minhas pernas, confiando em mim. Aceitei que ficaria comigo e apenas disse:

— Vamos lá, tigradinho.

Ele não me deixou desde então. Ajudava a encontrar novos abandonados, e alguns até conseguiam sentir seu calor. Outros gatos, que não o viam, gostavam de estar por perto. Algumas vezes, humanos e bichanos abandonados formavam duplas improváveis por causa da gente.

Comecei a entender. Ele era um mascote celestial, designado para me ajudar com o trabalho. Pelo menos foi o que pensei. Até que, depois de algumas semanas de parceria com Tigradinho, O Cara apareceu para mim.

— Gostou do presente? — Sua voz inconfundível soou na minha mente.

— Que… que presente? — perguntei.

— Esse, bem aí na sua frente. — Olhei para Tigradinho, que se espreguiçava entre meus pés.

— Tigradinho? Ele é um bom colega de trabalho.

Ele riu.

— Colega de trabalho? Z, ele é seu anjo protetor! Você o escolheu a partir do momento que pediu para que ele sobrevivesse, aquele dia, na lata de lixo. Quando ele miou e você foi correndo para ver se estava bem. Seu brilho foi tão forte que uma parte da sua missão foi passada a ele. Você o batizou de Tigradinho, mas eu o chamo de Esperança.

Fiquei sem reação. O Cara continuou:

— Você passou tantos milênios cuidando dos abandonados que se tornou um deles. Então pensei: e se o anjo dos abandonados, abandonado que é, ganhasse companhia? Aí está.

Jamais senti tanta ternura. Meu brilho intensificou-se. Esperança Tigradinho se aconchegou no meu colo. Outros gatinhos começaram a se aproximar. E ali dormimos, antes de voltar ao trabalho.

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